Na fase de protótipo, o dispositivo é dobrável e poderá ser usado para múltiplas aplicações, em veículos, roupas, aparelhos eletroeletrônicos e até microssatélites

Fonte: Revista FAPESP

Uma bateria sintetizada com nanopartículas de chumbo e carbono e dotada de uma arquitetura inovadora, inspirada nas células a combustível de hidrogênio, é a aposta de um grupo do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo. O objetivo é criar um sistema de armazenamento de energia mais leve e eficiente do que as baterias de chumbo convencionais usadas em automóveis e aplicações industriais. Os resultados do trabalho foram publicados no periódico Journal of Energy Storage, em março. Um pedido de patente do dispositivo deverá ser submetido ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

"Nosso protótipo substitui os tradicionais eletrodos metálicos de chumbo das baterias tradicionais por nanopartículas de chumbo fixadas em um tecido de carbono flexível, muito mais leve e condutor do que o chumbo metálico”, explica o químico Almir Oliveira Neto, do Centro de Células a Combustível e Hidrogênio do Ipen, que liderou o projeto.

Outra novidade é o uso de um eletrólito polimérico sólido – uma membrana transportadora de prótons – no lugar do eletrólito líquido das baterias de chumbo-ácido. Em uma bateria automotiva, o eletrólito (ácido sulfúrico diluído em água) desempenha o papel de um elemento condutor transportando os íons elétricos entre o polo positivo (cátodo) e o negativo (ânodo) quando a bateria está sendo carregada ou descarregada.

"A membrana polimérica deu flexibilidade ao sistema e reduziu seu peso”, destaca o químico Rodrigo Fernando Brambilla de Souza, primeiro autor do artigo. A vantagem de eletrólitos sólidos é que eles são menos propensos a vazamentos e derramamentos, elevando a segurança da bateria. A ausência de líquidos também pode reduzir a corrosão interna e outros processos de degradação, prolongando a vida útil do sistema.

O protótipo da bateria, cujo desenvolvimento também envolveu o Centro de Ciência e Tecnologia de Materiais do Ipen, mede cerca de 5 centímetros quadrados e têm 1,2 milímetro de espessura. Tem a forma de um sanduíche, com dois tecidos de carbono impregnados de nanopartículas de chumbo prensados a quente com a membrana transportadora de prótons no meio (ver infográfico abaixo). "A célula pesa apenas 0,73 grama [g] e, em testes laboratoriais, teve a mesma eficiência energética de uma pilha de chumbo tradicional de 15 g. É 20 vezes mais leve e seu tamanho foi reduzido em 90%”, diz Souza, atualmente em estágio de pós-doutorado no Ipen.


Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Outro aspecto importante da inovação é sua estabilidade eletroquímica, ou seja, a capacidade de carregar e descarregar, ou ciclar, no jargão técnico, sem perder tensão elétrica – a do protótipo, no caso, é de 2 volts. "A incorporação de carbono na estrutura de chumbo não só melhorou a estabilidade das nanopartículas, mas também resultou em um desempenho altamente estável da bateria ao longo de 100 ciclos, com variações potenciais de descarga menores do que 2%”, anotaram os autores no artigo da revista Journal of Energy Storage.

"A integração bem-sucedida da arquitetura PEM-FC [células a combustível de membrana de troca de prótons] na tecnologia CLAB [ácido-chumbo-carbono] abre caminhos para soluções inovadoras e flexíveis de armazenamento de energia”, conclui o artigo. A equipe é formada ainda pelos pesquisadores Édson Pereira Soares e Larissa Otubo, do Ipen, pela doutoranda em tecnologia nuclear Victória Maia e pelos alunos de iniciação científica Felipe Da Conceição, da Faculdade Osvaldo Cruz, e Gabriel Silvestrin, do Centro Universitário FMU, ambos em São Paulo.

Avanço tecnológico

Baterias de chumbo-ácido (LAB) existem há mais de 150 anos e continuam muito relevantes. "Diversas inovações foram feitas para melhorar o desempenho dessa tecnologia, ainda hoje uma opção de baixo custo, robusta e confiável no mercado de baterias recarregáveis”, atesta a química Lucia Helena Mascaro Sales, pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Centro de Inovação em Novas Energias (Cine), apoiado pela FAPESP. "A desvantagem delas é serem pesadas e ocuparem muito espaço. Os coletores de corrente são grades de chumbo, que correspondem a 30% até 60% do peso.” Uma bateria tradicional de chumbo pesa, em média, 14 quilos (kg). "Estimamos que um modelo equivalente do dispositivo criado por nosso grupo poderá pesar entre 1 e 2 kg”, diz Souza.

Os sistemas de armazenamento chumbo-carbono são uma evolução da tecnologia LAB por incorporar materiais de carbono nos eletrodos. O carbono melhora o desempenho do sistema por elevar a estabilidade da célula ao reduzir a sulfatação – o crescimento de cristais de sulfato nos eletrodos, o que acaba degradando a bateria. O resultado é uma melhora significativa na ciclagem e eficiência.


Microscopia eletrônica de amostra de nanopartículas de chumbo em tecido de carbono mostra a tendência do metal a se apresentar em formato de agulha

SOUZA, R. F. B.et al.Journal of Energy Storage, 2024

Baterias de chumbo-carbono, destaca o físico Hudson Zanin, especialista em sistemas de armazenamento de energia da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e que não integra a equipe do Ipen, já são comercializadas há algum tempo, com vários fabricantes ao redor do mundo. "A Moura, por exemplo, tem um sistema de armazenamento e gestão de energia, chamado BEES, com a tecnologia de chumbo-carbono”, diz o pesquisador.

A solução proposta pelo Ipen, contudo, inova ao permitir que essas baterias sejam flexíveis em um futuro próximo, podendo resultar em um dispositivo dobrável, ao adotar um desenho similar ao das células a combustível, em que os eletrodos metálicos tradicionais de chumbo são substituídos pelo tecido de carbono impregnado de nanopartículas de chumbo.

"O Ipen propõe uma abordagem inovadora ao combinar a tecnologia convencional de baterias de chumbo-ácido com elementos avançados de design de células a combustível”, reconhece Zanin. Para ele, ao substituir os eletrodos convencionais por nanopartículas de chumbo fixadas em um tecido de carbono flexível, o dispositivo torna-se mais eficiente porque as nanopartículas oferecem uma área superficial significativamente maior para as reações eletroquímicas, que poderão gerar corrente elétrica mais densa. "O tecido apresenta ainda a vantagem de absorver melhor as tensões mecânicas do que os eletrodos metálicos rígidos. Com isso, reduz-se o risco de danos estruturais durante os ciclos de carga e descarga”, afirma o pesquisador da Unicamp.

Sales, da UFSCar, destaca que a flexibilidade da bateria permitirá que ela seja torcida e moldada em diferentes formas. "Isso poderá expandir o emprego da tecnologia em aplicações modernas, como eletrônicos portáteis, dispositivos médicos, têxteis inteligentes vestíveis, sensores, entre outros, além do uso mais tradicional em eletroeletrônicos, veículos e sistemas estacionários de armazenamento de energia”, pondera.

Em ensaios laboratoriais, o dispositivo operou sem perder eficiência na faixa de temperatura entre -20 e 120 graus Celsius. "Se conseguirmos aumentar seu desempenho para mais de 2 mil ciclos, até microssatélites podem ser alvo da nossa solução”, sugere Souza. Baterias de chumbo usadas em veículos chegam a 500 ciclos.

Desafios a superar

Versátil e promissora, a tecnologia ainda se encontra em um estágio inicial, focado na prova de conceito e nas primeiras etapas de prototipagem. "Estamos em TRL 3-4 e os próximos passos serão baratear os materiais para possibilitar a produção em maior escala”, afirma Oliveira. Criada pela agência espacial norte-americana Nasa, a escala TRL (Nível de Maturidade Tecnológica) vai do nível 1 (pesquisa básica) ao 9 (produto no mercado).

O engenheiro mecânico Giovani Grespan, em estágio de pós-doutorado na UFSCar e estudioso dos dispositivos de chumbo-ácido, avalia como positiva a iniciativa do Ipen, mas ressalta que o desenvolvimento de baterias exige um extenso caminho que passa por diversos testes de desempenho, segurança e validação. "Há problemas a serem resolvidos nessa proposta. Um deles refere-se aos eletrólitos sólidos poliméricos, que podem aumentar a resistência interna da bateria e reduzir a velocidade de carga e descarga”, pondera.

Reduzir os custos dos materiais e dos processos de produção, especialmente das membranas de prótons e dos eletrólitos, também é um dos desafios futuros, complementa Zanin. Outro é desenvolver processos de fabricação em larga escala que mantenham a qualidade e a consistência dos materiais avançados. Será preciso, ainda, demonstrar a durabilidade e a confiabilidade do protótipo sob condições reais de operação por períodos prolongados. "Essas melhorias podem posicionar a tecnologia como uma alternativa viável e competitiva no mercado de armazenamento de energia”, avalia o pesquisador da Unicamp.