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Energia nuclear em debate (por Roberto Vicente)

Publicada em: 14/02/2025 10:08 - Notícias

O debate sobre o uso da tecnologia nuclear ou de fontes alternativas de energia é trazido ao espaço público há mais de meio século

Fonte: sul21

Roberto Vicente (*)

Chamou nossa atenção o artigo publicado recentemente na página do Sul21, "Deus e as usinas nucleares” de autoria do professor Heitor Scalambrini Costa [Sul21, Opinião, 25 de dezembro de 2024]. Neste, e em outros artigos do eminente professor sobre o uso da tecnologia nuclear em vários veículos de comunicação, há afirmações que precisam ser contestadas, em nome de um saudável debate sobre questões que interessam a nossa sociedade e em nome de se restabelecer a verdade, em várias passagens do artigo.

Não se tem a pretensão de fazer uma revisão detalhada do artigo, mas contestar e argumentar contra as afirmações que abordem pontos importantes do assunto.

O debate sobre o uso da tecnologia nuclear ou de fontes alternativas de energia é trazido ao espaço público, de tempos em tempos, há mais de meio século. Curiosamente, muitos daqueles que se envolvem nesse debate insistem em levantar as mesmas questões que já foram discutidas à exaustão e repetem os mesmos argumentos já amplamente refutados pela ciência.

Ainda que o tema exigisse a intervenção de especialistas em ‘Energia’, que não é o meu caso, o trabalho em temas tangentes à geração de energia de origem nuclear, como gestão de rejeitos radioativos, que é o meu caso, permite reconhecer, de imediato, algumas passagens dos artigos do nobre professor, que merecem reparo. São erros conceituais ou de outra natureza, que adentram o espaço do debate público e acabam se tornando uma fonte de notícias que desinformam, deseducam, corrompem, criam preconceitos, e esses erros devem, portanto, ser apontados e debatidos.

Começo dizendo que compartilho a opinião do autor de que a energia nuclear não é uma fonte limpa e concordo, também, que nenhuma é limpa, a menos que se diga o que se entende por ‘limpa’ ou se crie uma definição de ‘fonte limpa’ que se ajuste, sob medida, para a fonte que se quiser vender como limpa. Nesse sentido, ‘fonte renovável’ é um conceito que tem a mesma precariedade: precisa de uma definição bem ‘ajustada’ para valer de verdade. Se se quiser que os termos usados tenham o sentido mais imediato, aquele com o qual o público recebe e interpreta os adjetivos ‘limpa’, ‘renovável’, ‘sustentável’ etc., o uso deles não passa de esperteza. É preciso alertar, porém, que essas palavras podem ser, também, repetidas por muitos por pura inocência. Não se deve julgar mal ninguém, a priori.

Em relação a essa afirmação, do nobre professor, de que inexiste fonte ‘limpa’, é preciso destacar que a energia solar, a eólica e outras estão sendo tão bem promovidas, com publicidade paga ou não, há décadas, que acabaram por se tornar sinônimos de ‘fontes limpas de energia’, sem que a ‘propaganda enganosa’ tenha sido desmascarada. Deve-se lamentar que a energia nuclear, ela também, tenha entrado nessa onda agora.

Desde 1975, quando comecei a acompanhar, mais ou menos de perto, esse debate, parece que os adversários do uso da energia nuclear continuam a bater nas mesmas teclas, sem se dar ao trabalho de ir examinar um pouco mais profundamente os fundamentos científicos usados por aqueles que a defendem. Certamente têm tido sucesso como estratégia para ‘vencer’ o debate junto ao público. Aquelas críticas que os acusadores fizeram ou que ainda fazem, que são merecidas, e que não foram ainda acolhidas pela indústria nuclear, devem continuar a ser feitas. No entanto, grande parte daquilo que os acusadores repetem para a audiência é a ‘grande ameaça’ que a energia nuclear representa. Com todo o respeito, os senhores estão enganados ou estão a enganar e é isso que precisa ser esclarecido.

Senão, vejamos:

Ao citar o deputado federal Júlio Lopes (RJem seu artigo, o nobre professor da UFPe fez exatamente aquilo que reprovou num artigo anterior [Instituto Humanitas Unisinos. O negacionismo nuclear e suas falácias. 12 Dezembro de 2023], que é o uso de falácias como argumento. Ao descrever o deputado como aquele que sofre ações na justiça, está utilizando o argumento ‘Ad hominen’, uma bem conhecida categoria de falácia, aquela em que o julgamento sobre a justeza daquilo que é dito repousa na crítica ao autor, não no conteúdo do que disse. Ao fazê-lo, o nobre professor transmite aos leitores do Sul21 a ideia de que o deputado não tem direito de falar, por ter ações na justiça; ou talvez tenha querido dizer que, por causa das ações, suas opiniões não têm valor, não devem ser levadas em consideração; ou, o mais provável, são opiniões suspeitas por razões e interesses escusos do deputado. Não sei qual foi a razão do deslize do professor, mas aí está ele, escancarado para todos verem.

Continua o professor: "Chegou a (sicaudácia de afirmar que ‘o País perderia bilhões e um conhecimento estratégico, caso não fosse aprovada a continuidade do empreendimento’. Frases ao léu, sem bases comprobatórias. O que o País perderia, conforme o deputado, seria um ganho que ficaria livre do perigo iminente que representa tal tecnologia. O conhecimento é conquistado em estudos científicos, pesquisas nas universidades, em reatores de pesquisa, e não em uma usina industrial.”

Há tantos problemas com o parágrafo do eminente professor que nem sei por onde começar. Está tudo errado. Exortamos o professor a fazer um esforço para entender a frase do deputado e reconhecer que está correta. Não se referia ele ao conhecimento científico que é obtido em ‘reatores de pesquisa, em universidades’. É o conhecimento da ‘tecnologia’, do ‘saber fazer’, aquele da cadeia de suprimentos, e que sim, está sendo perdido, não só no Brasil, mas no mundo todo, como consequência da ‘perda do conhecimento’ que afetou a indústria nuclear, por causa da guinada que muitos países deram em direção a outras fontes energéticas, após os acidentes de Three Miles Island, Chernobyl e Fukushima. Poucos países, no mundo, continuaram a investir no setor nuclear nas últimas décadas. O professor acha que são frases ao léu, sem ‘base comprobatória’, mas, talvez, se ele pudesse se informar melhor, lendo um pouco da literatura que foi produzida nas últimas duas décadas sobre a ‘perda do conhecimento’, literatura essa publicada em revistas especializadas sobre o assunto, quem sabe, poderia mudar de opinião, ao ver nela a tal ‘base comprobatória’ que reclama.

Quando se refere, na mesma frase, ao ‘perigo iminente’ representado pelas usinas nucleares, acredito que o professor esteja fazendo uma abordagem rasa do assunto. Seria melhor ajudar a esclarecer o público, dizendo de forma acessível aos seus leitores, o que significa ‘perigo’ no caso em apreço. ‘Perigo iminente’ poderia ser substituído por informação sobre os riscos reais do uso de usinas nucleares. O eminente professor acha que seria ‘um ganho para o país’, ficarmos sem a energia nuclear, mas seria mais produtivo usar esse espaço de comunicação com o público, para informar com maior exatidão e precisão os riscos e as vantagens, os quais precisam ser bem ponderados na tomada de decisão, da mesma forma como para qualquer outra fonte de energia. São temas complexos que precisam ser explicados ao público. O que ninguém precisa é de pessoas respeitáveis dizendo platitudes e fazendo panfletagem.

Quando o nobre professor fala da tecnologia nuclear como ‘uma tecnologia mais conhecida pela destruição, morte e desastres causados pela radiação…’ somos forçados a concordar. A percepção do público é essa que ele descreve. É assim que o público vê a tecnologia nuclear. No entanto, é uma percepção preconceituosa e sem base na realidade, e que o professor ajuda a espalhar e perpetuar. Uma abordagem com base factual pode ter o condão de criar, na sociedade, uma visão real dos riscos e das vantagens, de modo que ela possa fazer suas escolhas de maneira bem informada.

Uma pessoa comum do público pode não ter as informações e as ferramentas intelectuais para fazer um julgamento acertado sobre como se devem escolher as fontes de energia mais adequadas para o lugar e o momento histórico da sociedade em que vive. Mas no caso do professor, todas as informações estão à disposição dele e as ferramentas analíticas, imagino que as tenha adquirido ao longo da carreira profissional. A única explicação que consigo pensar para o seu negacionismo nuclear é que a cegueira que o extremismo causa tenha agido de forma eficiente para produzir ‘catarata’ em seus olhos. Admito que todos nós podemos ser cegos, ignorantes, preconceituosos, em maior ou menor grau, sobre pelo menos, algumas coisas. Todos nós, seres humanos, podemos estar sujeitos a incorrer nesse pecado. No entanto, quem se importa em não ficar ‘no lado errado’, luta para aperfeiçoar sua visão do mundo.

Considere, por exemplo, que muitas pessoas que defendem o uso da tecnologia nuclear, o fazem não por serem ‘doentes’, como o professor sugere ao chamá-los de ‘nucleopatas’, mas sim por terem princípios, valores morais, conhecimento, crenças e informação que as fazem defender essa ideia de forma honesta e, ainda mais, fundamentada num humanismo com ética e preocupação ambiental. Chamar-nos, os defensores da energia nuclear, por nomes feios não acrescenta nada ao debate; só diminui a sua própria dignidade, professor!

Ao ler que a continuidade do programa nuclear brasileiro, ‘está fora do contexto econômico, científico, ambiental, ético e social, que a discussão exige’, tenho que discordar totalmente. Há razões de sobra para se discutir isso tudo, sim. Países como Alemanha, Bélgica, Suécia e outros que decidiram encerrar seus programas de geração nucleoelétrica, ou já se arrependeram, ou estão na iminência de ter de reconhecer que sua fé, e os pesados investimentos que fizeram nas fontes ‘limpas, sustentáveis e renováveis’ não se consubstanciaram nos resultados que eram buscados. Longe disso. Sugiro, como obra de referência, o artigo de Jan Emblemsvag, "What if Germany had invested in nuclear power? A comparison between the German energy policy the last 20 y and an alternative policy of investing in nuclear power. International Journal of Sustainable Energy, 2024, Vol. 43, No. 1. Os resultados desse estudo indicam que a Alemanha, que desligou progressivamente suas usinas nucleares, investiu EUR 387 bilhões em fontes solar e eólica, entre 2002 e 2022, e gastou mais EUR 310 bilhões em subsídios. Conseguiu reduzir em 25% suas emissões de CO2. Se tivesse mantido seu parque nuclear em funcionamento, poderia ter alcançado uma redução de 73%, gastando somente a metade dos EUR 696 bilhões. O preço da energia na Alemanha aumentou também para o consumidor como resultado dessa política.

No artigo que estamos discutindo "Deus e as usinas nucleares”, há referência a um artigo sobre a Alemanha abandonar a energia nuclear, usada como argumento em prol da tese anti-nuclear, mas é importante destacar que a matéria citada foi publicada em 2011. Muita coisa mudou desde então. Esse artigo de 2024 é, em minha opinião, contundente. Uma vitória por knock-out. Talvez o professor pudesse fazer uma resenha desse ‘paper pró-nuclear’ e explicar porque estaria errado, já que contradiz tudo o que o professor tem defendido. Em vez da panfletagem rasa, isso sim, seria uma contribuição significativa para o debate.

Sobre o ‘lixo atômico’, diz o nobre professor que ‘a ciência ainda não sabe como armazenar com segurança.’ Devemos reconhecer que o assunto é árido para a maioria das pessoas, até mesmo para um eminente professor universitário que não seja especialista no assunto. No entanto, fazer essa afirmação pode ser uma auto declaração de ignorância. Será que o professor considera que a ciência e a tecnologia já existentes para isolar os rejeitos nucleares da biosfera, pelo tempo que for necessário, são inadequadas? Será que o professor acha que elas não são suficientemente seguras? Será, talvez, que as considere inexequíveis, tendo em vista que não estão ainda implantadas em qualquer país? Será que quis dizer exatamente isso, que tais tecnologias não existem? Se for esse o caso, esse é o tipo de afirmação que os professores universitários recomendam que seus alunos não façam em seus trabalhos acadêmicos, porque é difícil de sustentar. Dizer que alguma coisa não existe pode ser um ‘espinho’ que o nobre professor botou em seu próprio assento.

Por fim, diz o professor: "No afã de defender uma fonte de energia cujo interesse é somente "fazer negócios”, o interesse público é deixado de lado, pois a eletricidade nuclear é cara, bem mais cara que as fontes renováveis de energia, como a solar, eólica e hidráulica, …"

Em primeiro lugar, a acusação de que as empresas envolvidas nos projetos nucleares só têm interesse em ‘fazer negócios’, abre a porta para se perguntar se o nobre professor acredita que os vendedores de painéis solares ou aerogeradores trabalham nisso por seu amor desinteressado na preservação do ambiente e na ‘salvação do mundo’. A verdade é que parece pura hipocrisia do nobre professor.

Em segundo lugar, afirmar que o preço do quilowatt.hora nuclear entregue na rede é mais caro que o de outras fontes, mereceria alguma referência e explicação de contexto. Embora toda a informação necessária esteja disponível para todos na Internet, requer muito trabalho coligir, analisar e apresentar o resultado de tal avaliação. O tema é ainda mais complexo que os outros discutidos antes, pelo menos para aqueles que não sejam especialistas, mas acredito que seja relativamente simples para quem é da área Energética e que entende os conceitos difíceis dela e que sabe discernir as conjunturas políticas, geopolíticas e econômicas intrincadas que determinam os preços da energia entregue para o consumidor para, assim, fundamentar sua opinião. Portanto, para encerrar, se pede ao professor, que cite os fatos que sustentam a sua afirmação.

Há muitos temas, no artigo citado ou nos outros artigos do eminente professor Heitor Scalambrini Costa, que merecem ser abordados com detalhe maior do que o feito agora, com referências bibliográficas e com fundamentação conceitual e factual, trabalho esse que se deixará para outra ocasião.

(*) Bacharel em Física, mestre e doutor em Tecnologia Nuclear, especialista em Gestão de Rejeitos Radioativos e tecnologista do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

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