O Carnaval pode ser entendido como a festa que caracteriza a identidade cultural do Brasil e que sintetiza a diversidade artística do povo brasileiro. Dentre as manifestações culturais que tradicionalmente acontecem durante esse período de festas, o desfile das escolas de samba é um dos mais antigos, que tem maior amplitude no exterior e que cumpre um importante papel social e educacional.
Através dos seus enredos, traduzidos em samba-enredo, fantasias e alegorias, as escolas de samba ajudam a divulgar fatos históricos do Brasil, a lançar luz sobre personalidades que foram invisibilizadas pela historiografia tradicional e até mesmo difundir o Conhecimento sobre a Ciência, conforme analisou João Gustavo Melo, pesquisador de enredo da Unidos do Viradouro e autor de livros sobre a cultura carnavalesca:
"A divulgação científica é algo muito importante para a sociedade. No Brasil, a gente ainda tem muitos desafios nessa área. Quando a cultura popular abraça e ajuda na divulgação científica, cumpre uma função social muito importante para o país. Enredos científicos (das chamadas ciências naturais), quando decodificados em samba por poetas populares, ganham um lirismo impressionante. E leva a uma parte da população alguns conceitos e ideias antes restritos. A escola de samba bota a ciência na boca do povo".
Aproveitando a chegada do próximo carnaval, o Instituto de Engenharia Nuclear resgata dez desfiles que passaram pelo Sambódromo do Rio de Janeiro que versaram sobre teorias, descobertas e elementos presentes no universo da Ciência:
Mocidade Independente de Padre Miguel, 1991: “Chuê, Chuá... As Águas vão rolar!”
A Verde e Branco da Zona Oeste do Rio de Janeiro conquistou o bicampeonato nesse ano com um enredo que fala da presença do elemento água em vários segmentos, seja na parte científica, já que essa é a matéria que gerou a vida no Planeta Terra, seja nas religiões e no nosso dia a dia.
O desfile assinado pelos carnavalescos Renato Lage e Lilian Rabelo tem como uma das imagens mais marcantes da história dos desfiles a segunda alegoria, chamada “Planeta Água”, que reproduzia o início da vida no líquido uterino e a união dos cinco continentes pelos mares (imagem acima).
Imperatriz Leopoldinense, 1995: “Mais Vale um Jegue que me carregue, do que um camelo que me derrube... Lá no Ceará!”
O enredo desenvolvido pela reconhecida e premiada carnavalesca Rosa Magalhães, que faleceu em julho de 2024, se inspirou numa expedição encomendada pelo imperador D. Pedro II, que levou cientistas brasileiros para o Ceará. Com base em experiências feitas pela Sociedade Zoológica da Aclimatação de Paris, o Governo Imperial decidiu trazer 14 camelos da Argélia para que se reproduzissem no Sertão Nordestino, semelhante ao que aconteceu em regiões semiáridas da Austrália e Estados Unidos.
O que o imperador e os cientistas dessa expedição não contavam é que os camelos não suportassem o clima e habitat do Nordeste. O enredo conclui que o animal que melhor se adapta às condições severas dessa região do país é o jegue, que faz parte do cotidiano e da cultura popular nordestina. Com essa história, a Imperatriz conquistou o título do carnaval de 1995.
Mocidade Independente de Padre Miguel, 1996: “Criador e Criatura”
Na década de 1990, a Mocidade se notabilizou por enredos que flertavam com o futurismo e a ficção científica. Depois do já citado desfile sobre a água, a escola contaria a história das criações divinas e dos grandes inventores desde a antiguidade até os anos contemporâneos.
O desfile, que citou as invenções da roda, da imprensa, do avião, mencionava ainda as teorias descobertas pelo cientista Albert Einstein. Houve ainda uma alegoria reproduzindo a fertilização in vitro, onde eram gerados os chamados bebês de proveta, que ganharam notoriedade nas décadas anteriores. Esse foi mais um desfile a ficar no lugar mais alto do pódio do carnaval exaltando a ciência.
Unidos do Viradouro, 1997: “Trevas! Luz! A Explosão do Universo”
Seguindo a sequência de desfiles vitoriosos que exaltaram o saber científico, a Viradouro começava sua narrativa a partir do nada, com uma comissão de frente e um carro abre-alas (imagem acimareproduzindo um mundo de trevas e sem vida, antes de acontecer a explosão do Big Bang, que é a teoria mais aceita pelos cientistas para explicar a origem do universo.
A partir desse fenômeno, a escola da cidade de Niterói trouxe para a avenida todos os elementos que surgiram após o Big Bang: a luz, a água, a terra, o fogo, o ar, os seres vivos até chegar os seres humanos. Esse desfile marca o último título conquistado pelo icônico carnavalesco Joãosinho Trinta e gerou um dos sambas-enredo mais tocados na história do carnaval.
Unidos da Tijuca, 2004: “O Sonho da Criação e a Criação do Sonho: a Arte da Ciência no tempo do impossível”
Em parceria com a Casa da Ciência, instituição vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Unidos da Tijuca desenvolveu seu desfile para o carnaval de 2004 sobre como a ciência contribuiu para a evolução da humanidade ao longo da história, tendo como fio condutor uma máquina do tempo comandada por Einstein.
O desfile passou pelo Renascimento, período em que Leonardo Da Vinci inventou os primeiros maquinários aéreos; citou os alquimistas, que foram os precursores da química; lembrou da invenção da eletricidade até chegar às descobertas sobre a anatomia humana.
Um dos momentos marcantes desse desfile é a passagem da quinta alegoria “A Criação da Vida” que, através de uma torre metálica composta por 127 componentes pintados de azul-prateado, reproduziu o DNA, cuja descoberta foi um marco na biologia e na medicina, pois permitiu compreender como as informações genéticas são transmitidas na reprodução. A coreografia realizada por esses componentes fez da alegoria uma das imagens mais impactantes da história do carnaval, sendo a assinatura dos trabalhos do carnavalesco Paulo Barros, que estreava no Grupo Especial naquele ano.
Mangueira, 2005: “Mangueira Energiza a Avenida. O Carnaval é Pura Energia e a Energia é Nosso Desafio!”
A energia, tão presente na área nuclear, foi o enredo do desfile de 20 anos atrás dessa tradicional agremiação. Com o patrocínio da Petrobras, a Verde e Rosa também recorreu à teoria da origem da vida para falar sobre como a energia fez surgir a natureza e o mundo em que vivemos.
O desfile criado pelo carnavalesco Max Lopes citou as várias formas de abastecimento de energia, como a elétrica, a hidroelétrica (reproduzida na imagem acima), a energia gerada pelo carvão e petróleo, e a energia nuclear também teve espaço nessa apresentação, onde se destacou sua importância para um futuro mais sustentável.
Salgueiro, 2006: “Microcosmos: o que os olhos não veem, o coração sente!”
O carnavalesco Renato Lage mudou de escola, mas manteve seu repertório de desfiles inspirados no universo científico. Desta vez, o olhar macro do carnaval se voltou para tudo o que é micro, ou seja, que não se pode enxergar a olho nu.
A sinopse do enredo convidava o público para “o menor espetáculo da terra, da água e do ar”, lançando uma lupa sobre ambientes habitados por insetos e seres microscópicos, além de fazer uma espécie de “viagem insólita” para dentro do organismo humano, que também é um universo rico de conhecimento e curiosidades.
Portela, 2008: “Reconstruindo a Natureza, Recriando a Vida: o Sonho vira Realidade”
A escola mais vitoriosa do carnaval carioca – com 22 títulos no total – ao invés de trazer um alerta sobre as consequências das ações maléficas do homem sobre o meio ambiente, optou por destacar atitudes benéficas que ajudam a preservar os recursos naturais e manter a qualidade de vida na Terra, trazendo um olhar mais otimista sobre as mudanças climáticas.
Um exemplo evidente dessa narrativa criada pelo carnavalesco Cahê Rodrigues se encontra na alegoria “Viva a Vida” (imagem acima). Em um momento, ela traz uma natureza seca e degradante, com um bebê subnutrido no centro, e em um outro, ela se transforma numa alegoria repleta de flores, com um ambiente mais colorido e um bebê saudável.
União da Ilha do Governador, 2011: “O Mistério da Vida”
Uma das escolas mais populares do carnaval apresentou para o público um enredo sobre a expedição do cientista inglês Charles Darwin, realizada entre 1832 e 1836, que gerou a conhecida Teoria da Evolução das Espécies, onde ele defende que os seres vivos descendem de ancestrais comuns e que ao longo do tempo geológico foram sofrendo alterações.
O enredo assinado pelo carnavalesco Alex de Souza lembra que, a bordo do navio Beagle, Darwin visitou a Ilha de Galápagos, onde fez o primeiro registro de uma tartaruga gigante (imagem acima), além de demonstrar as análises do cientista sobre a evolução de plantas, pássaros e insetos. Mesmo sem competir nesse ano em função de um incêndio que aconteceu em seu barracão restando um mês para os desfiles, a União da Ilha recebeu o Estandarte de Ouro de Melhor Escola, prêmio concedido pelo Jornal O Globo desde 1972.
Unidos de Vila Isabel, 2018: “Corra, que o Futuro vem aí!”
Semelhante ao que fez sobre o enredo da Ciência na Unidos da Tijuca em 2004, o carnavalesco Paulo Barros se debruçou sobre as invenções fizeram o mundo avançar e atingir futuros que pareciam utópicos para quem viveu no passado. Desde a invenção do fogo, que mudou os rumos da geração da energia, passando pela evolução da comunicação, chegando à conquista do espaço sideral pelo homem.
Além desses desfiles do carnaval carioca, vale uma menção honrosa também para o enredo da escola de samba paulista Vai-Vai, do ano de 2009, que trata da contribuição da ciência para o combate às várias doenças que existem no mundo e os cuidados com a saúde.
Todos esses exemplos reforçam o quanto a ciência pode estar mais próxima da sociedade, em espaços que, aparentemente, não tenham qualquer relação com essa área, como é o carnaval, mas que podem potencializar saberes que costumam ficar retidos em livros, artigos ou em laboratórios.
Escrita por: José Lucas Brito